Hoje reuniriam-se com a expectativa de ser a última vez em vida. Um jantar definiria se continuariam sendo uma família. Tomou como sua a responsabilidade não deixar todos se separarem; prepararia a comida do exato jeito ensinado por sua mãe. Esperava que o paladar trouxesse a lembrança do que são, fazendo outro encontro vir e pouco após mais um, continuando unidos ate que ela própria morresse. O término das reuniões, depois, não a afetaria. A morte traz consigo um certo desapego.
Preparou o local de trabalho; organizou os ingredientes; iniciou a montagem de sua obra de arte. Ligou o forno, logo estaria quente: pronto para engolir a forma e vomitar salvação.
Após fechar a porta do pequeno realizador de milagres, o encarou. Não via nada em seu interior além da escuridão e perdeu-se ali.
O breu trouxe lembranças fragmentadas de sua história, alguns momentos com sua família. Continuou olhando fixamente o negrume e esqueceu-se o porquê. Sentimentos ruins vieram, pressentia todo seu trabalho sendo destruido.
Aquele não era um simples forno, mas um pequeno inferno instalado em sua cozinha. O resultado previsto seria alterado por aquela caixa de trevas. A reunião seria um desastre, além de jamais voltarem a encontrar-se as ligações também cessariam.
O jantar queimaria, e sua família por consequência. Sem saber os havia condenado à cremação. A comida estragaria junto às suas esperanças de que tudo terminasse bem. Ela viraria cinzas; além de espalhar-se ao vento o que poderia fazer?
Sua força é insignificante perto do compartimento maligno. Em pensar que precisava dele para completar seu plano, se arrependia. A expectativa do cheiro forte, lúgubre e sufocante já a envenenava.
No auge de seu desespero estático o telefone tocou. Deixaria o destino atuar e sai da cozinha. Ninguém virá. Desligou inconformada, nem se deu o ao trabalho de tentar remarcar o encontro.
Volta à cozinha e percebe que a comida está pronta. Pega uma porção e ao provar tem um breve esclarecimento. A culpa é dela que os chamou fantasiando com a possibilidade de todos ficarem bem. O forno faz a parte que lhe cabia. Sorrindo um pouco pensa que sua mãe ficaria orgulhosa, a comida estava exatamente como ela prepararia.
II
Há 14 anos
A'Naya diz:
ResponderExcluir*hm, lesse o forno?
JeFF diz:
*li sim..
*naquele dia que você mandou
A'Naya diz:
*.-.
*que achou?
JeFF diz:
*Não achei muito, na verdade.
A'Naya diz:
*......
*dissertação com duas linhas please
JeFF diz:
*Da mesma forma que você é previsível, se contorse, às vezes, de uma forma que a gente lê, vê o que não espera. Não sei.. é aquela mistura de simples e óbvio com complexo e inteligivel.
A'Naya diz:
*:B
*fuck yeah \,,/
Como eu já disse antes, esse texto é profissional (no bom sentido)! Quer dizer, é bom o bastante para você sair pelos quatro cantos divulgando-o sem nenhum receio. Além disso, é o melhor texto-presente que já recebi! Não só por isso é especial. Quando leio sempre acabo me lembrando de Clarice Lispector, não sei, talvez esse subjetivismo meio simbolista, essa coisa do banal que se torna terrível... E a coisa toda flui, o texto flui!
ResponderExcluirDeixa eu dizer, existe um foco, tudo se passa naquele pequeno espaço-tempo do preparo do jantar. Pequeno tanto fisicamente (cozinha) e temporariamente (preparo do jantar), quando mentalmente restrito (focado apenas num objetivo/objeto). Trata-se de um ambiente por si só sufocante em que junto com a personagem vivemos um momento de tensão, se quiser, podemos dizer que estamos numa espécie de forno moral que nos cozinha junto com a personagem e a comida, sem que saibamos se o resultado será bom ou ruim.
A mente da personagem está quase todo tempo presa no forno e nas consequências do seu sucesso culinário, mas em alguns momentos dá umas escapadela, e justamente esses são momentos mais descontraídos, que quebram a seriedade do texto, como quando pensa no desapego ocasionado pela morte (adoro a ironia) e também quando se pensa como cinzas espalhando-se ao vento (uma ideia de conformismo e liberdade). Essas reflexões, apesar de serem sobre a morte dão um certo alívio, um "desapego" daquele ambiente angustioso.
O que funciona tão bem no texto é essa concisa relação entre os elementos. A tensão é sobretudo construida com base na remissão constante ao forno, que vai se transformando em algo cada vez mais terrível, e nos faz sentir todo desespero da personagem. Inicialmente o forno é o objeto de "salvação", o "pequeno realizador de milagres", entretanto, conforme a tensão da personagem aumenta e ela imagina que tudo poderá dar errado, o forno transforma-se no "pequeno inferno", na "caixa de trevas".
O final é maravilhoso. Em vez de concluir em um dos extremos esperados: um final feliz (jantar dá certo) ou triste (jantar queima), somos surpreendidos com uma terceira opção, uma espécie de caminho do meio - que afinal se mostra muito mais lógico! - onde o jantar sai perfeito, mas os familiares não comparecem. Conforme nos é sugerido no início, os familiares tem se afastado, o mais óbvio é que não viessem. A esperança da personagem deveria ser entre eles virem ou não, mas em vez disso, cega por sua tristeza e também por certa dose de culpa, imagina que tudo dependa exclusivamente dela e daquele jantar. Na sua cabeça aquela seria a última chance de sua família.
A personagem está entre o céu e o inferno e nós vamos com ela, perdemo-nos com ela naquelas chamas, naqueles lembranças e no louco devaneio onde a existência de uma família pudesse depender apenas de um forno. Talvez a personagem gostaria que assim fosse, assim as coisas seriam mais simples, colocando toda responsabilidade em suas costas ela poderia vislumbrar uma solução. Tudo dependeria apenas dela e daquele momento, os outros parentes estariam isentos de culpa.
Mas o telefonema interrompe a fantasia e tudo volta ao que era antes, o forno é apenas um forno, a sua família continua em crise, ela continua sozinha e com saudades de sua mãe. O fato de a refeição ter dado certo é uma ironia reveladora: o forno, afinal, "fez a parte que lhe cabia", isto é, o problema não estava nele, queimar ou não queimar não era a questão. A personagem sorri, talvez porque se deu conta que tampouco o problema estava nela, ela também tinha feito a sua parte, tão bem que "sua mãe ficaria orgulhosa". Saindo do forno moral, ela se descobre um bom prato. Nós também nos aliviamos.