quinta-feira, 10 de setembro de 2009

ancípite


Caminho na calçada de uma rua pouco iluminada. Escuto apenas passos e barulho de chaves, todos meus. Abro um portão que range; aperto o interfone que apita; pressiono o botão do elevador, mas acabo subindo pela escadaria. Prefiro ouvir passos e tilintar de chaves por algum tempo mais. Dois cliques e estou em casa.

Chaveiro em cima da mesa, bolsa no sofá, sapatos ao lado da porta e calça pendurada na cadeira. Janela aberta, cabelo solto e uma luz acesa. Barulho abafado de armário, som estridente de água em metal, zunido elétrico do fogão seguido de um plof do gás incendiando. Tinir de vidro ao fechar a geladeira, xícara com cinco colheres de café solúvel. Segunda luz acesa, roupas no chão do banheiro, água fria nos ombros, sabão cobrindo pele, xampu e cabelo. Toalha agora úmida, cortina aberta, nudez coberta, banheiro volta ao breu. Água fervente engolida pela xícara.

Vou até a bolsa, pego cigarros e isqueiro, volto ao café, coloco tudo no peitoril da janela. Por um momento estico o pescoço e observo os dois palmos de céu que a muralha de prédios a minha frente não conseguiu esconder. Antes de bebericar da xícara avalio o líquido negro fumegante. Essa noite não merece café, não seu sabor, um pouco de seu cheiro apenas. Da cozinha levo um copo com gelo até o minibar e apago a última luz; conhaque combina com meu humor ou sua falta.


Talvez não haja bebida que combine mais com seu teor alcoólico. Ah! O conhaque. Nem que soe tão sugestiva. Sua articulação traz implícito o ato de sorvê-la. A primeira sílaba e a primeira impressão, o líquido passa dos lábios e acumula-se em pequena quantidade na boca. Seguindo a pronúncia saboreia-se deslizando o sumo por toda extensão da língua. Para terminar, o engolir sucedido da expiração em deleite.


Retorno à janela. Próximo à quina direita há o café, no oposto o copo com gelo e álcool, exatamente no meio o maço aberto de cigarros com o isqueiro sobre ele. Os cotovelos estão no peitoril, formando um triângulo onde o vértice composto pelas mãos apoiam meu queixo. O quadro está pintado e sobra tempo para desfazê-lo.

Sem pressa examino as janelas que tomam o lugar do horizonte. A maior parte está apagada, algumas aparentam caleidoscópios refratando o colorido de televisões ou luminárias. Existem as que deixam transparecer sombras imóveis nas paredes, podendo ser computadores ou aquários, não importa a fonte o interessante são as sombras. Poucas trazem quadros que não sejam etéreos, como uma onde mostra um homem carregando um bebê de um lado para o outro, ou a que mostra dois idosos dançando. Vez por outra se acendem luzes de corredores e banheiros, poucas delas iluminam por muito tempo. Imagino que as não apagadas devem confortar alguma criança com medo de escuro. Embora em minha opinião não haja escuridão nessa cidade além da transportada pelas almas.

Um pouco desgastada de absorver tantos detalhes foco meus olhos na janela em frente a minha e tenho a surpresa agradável de ver-me refletida, mesmo que tenuamente. A xícara branca traz coloração marrom amarela, o copo é uma mancha luminescente, resolvo finalmente acender o primeiro cigarro da noite e um ponto avermelhado começa a compor a imagem. Uma tragada e lanço a fumaça para fora, ela não é perceptível em minha projeção. De meu corpo é visível ombros, braços, parte do colo e a cabeça, todo mais está engolido pelo preto. Rio com o pensamento de um humano composto apenas pelo que vejo agora, talvez seja um tanto sádico esse humor, mas encaixa-se perfeitamente com o ambiente. Talvez nem seja humor; prefiro bebericar o conhaque e esvaziar a mente, não quero destrinchar pensamentos. Volto a observar e fazer colocações mentais despretensiosas.


Passa-se tempo, minutos e horas. Alguns cigarros jazem no pires do café intocado. O copo tem um dedo de gelo derretido. Não há sono, porém tédio. Em breve o sol clareará o azul do céu e as responsabilidades serão jogadas em meus ombros, agora um pouco tensos pelas perspectiva e noite insone. Penso, antes de afastar-me da janela, que gostaria muito de poder ver o nascer do sol com todos os seus nuances mutáveis. Guardo e limpo tudo. Entro novamente no chuveiro. Preparo-me mentalmente para os sorrisos que darei depois que cruzar a porta do apartamento e durante toda minha estadia longe dele.

Ancípite, adj. 2 gên. (poét.) Que tem duas cabeças ou duas faces; de dois gumes; incerto. duvidoso, vacilante; (gram.) diz-se das consoantes l e r (Do lat. ancipite.)

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Segundo o dicionário:

Devaneador, adj. e s. m. Que, ou aquele que devaneia; sonhador.

Devanear, v. tr. dir. Imaginar, fantasiar, sonhar; intr. delirar; dizer ou imaginar coisas sem nexo; desvairar; tr. ind. cuidar, pensar. (De de+lat. vanu.)

Devaneio, s. m. Ato de devanear; sonho; fantasia; delírio, divagação; quimera.
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