Caminho na calçada de uma rua pouco iluminada. Escuto apenas
passos e barulho de chaves, todos meus. Abro um portão que range; aperto o
interfone que apita; pressiono o botão do elevador, mas acabo subindo pela
escadaria. Prefiro ouvir passos e tilintar de chaves por algum tempo mais. Dois
cliques e estou em casa.
Chaveiro em cima da mesa, bolsa no sofá, sapatos ao lado da
porta e calça pendurada na cadeira. Janela aberta, cabelo solto e uma luz
acesa. Barulho abafado de armário, som estridente de água em metal, zunido
elétrico do fogão seguido de um plof do gás incendiando. Tinir de vidro ao
fechar a geladeira, xícara com cinco colheres de café solúvel. Segunda luz
acesa, roupas no chão do banheiro, água fria nos ombros, sabão cobrindo pele,
xampu e cabelo. Toalha agora úmida, cortina aberta, nudez coberta, banheiro
volta ao breu. Água fervente engolida pela xícara.
Vou até a bolsa, pego cigarros e isqueiro, volto ao café, coloco
tudo no peitoril da janela. Por um momento estico o pescoço e observo os dois
palmos de céu que a muralha de prédios a minha frente não conseguiu esconder. Antes
de bebericar da xícara avalio o líquido negro fumegante. Essa noite não merece
café, não seu sabor, um pouco de seu cheiro apenas. Da cozinha levo um copo com
gelo até o minibar e apago a última luz; conhaque combina com meu humor ou sua
falta.
Talvez não haja bebida que combine mais com seu teor
alcoólico. Ah! O conhaque. Nem que soe tão sugestiva. Sua articulação traz
implícito o ato de sorvê-la. A primeira sílaba e a primeira impressão, o
líquido passa dos lábios e acumula-se em pequena quantidade na boca. Seguindo a
pronúncia saboreia-se deslizando o sumo por toda extensão da língua. Para
terminar, o engolir sucedido da expiração em deleite.
Retorno à janela. Próximo à quina direita há o café, no
oposto o copo com gelo e álcool, exatamente no meio o maço aberto de cigarros
com o isqueiro sobre ele. Os cotovelos estão no peitoril, formando um triângulo
onde o vértice composto pelas mãos apoiam meu queixo. O quadro está pintado e
sobra tempo para desfazê-lo.
Sem pressa examino as janelas que tomam o lugar do
horizonte. A maior parte está apagada, algumas aparentam caleidoscópios
refratando o colorido de televisões ou luminárias. Existem as que deixam
transparecer sombras imóveis nas paredes, podendo ser computadores ou aquários,
não importa a fonte o interessante são as sombras. Poucas trazem quadros que
não sejam etéreos, como uma onde mostra um homem carregando um bebê de um lado
para o outro, ou a que mostra dois idosos dançando. Vez por outra se acendem
luzes de corredores e banheiros, poucas delas iluminam por muito tempo. Imagino
que as não apagadas devem confortar alguma criança com medo de escuro. Embora
em minha opinião não haja escuridão nessa cidade além da transportada pelas
almas.
Um pouco desgastada de absorver tantos detalhes foco meus
olhos na janela em frente a minha e tenho a surpresa agradável de ver-me
refletida, mesmo que tenuamente. A xícara branca traz coloração marrom amarela,
o copo é uma mancha luminescente, resolvo finalmente acender o primeiro cigarro
da noite e um ponto avermelhado começa a compor a imagem. Uma tragada e lanço a
fumaça para fora, ela não é perceptível em minha projeção. De meu corpo é
visível ombros, braços, parte do colo e a cabeça, todo mais está engolido pelo
preto. Rio com o pensamento de um humano composto apenas pelo que vejo agora,
talvez seja um tanto sádico esse humor, mas encaixa-se perfeitamente com o
ambiente. Talvez nem seja humor; prefiro bebericar o conhaque e esvaziar a
mente, não quero destrinchar pensamentos. Volto a observar e fazer colocações
mentais despretensiosas.
Passa-se tempo, minutos e horas. Alguns cigarros jazem no
pires do café intocado. O copo tem um dedo de gelo derretido. Não há sono, porém
tédio. Em breve o sol clareará o azul do céu e as responsabilidades serão
jogadas em meus ombros, agora um pouco tensos pelas perspectiva e noite insone.
Penso, antes de afastar-me da janela, que gostaria muito de poder ver o nascer
do sol com todos os seus nuances mutáveis. Guardo e limpo tudo. Entro novamente
no chuveiro. Preparo-me mentalmente para os sorrisos que darei depois que
cruzar a porta do apartamento e durante toda minha estadia longe dele.
Ancípite, adj. 2 gên. (poét.) Que tem duas cabeças ou duas faces; de dois gumes; incerto. duvidoso, vacilante; (gram.) diz-se das consoantes l e r (Do lat. ancipite.)
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