Só e somente ele assistia suas brincadeiras, ria das suas piadas, gostava das suas canções sobre algodões-doce e flores amarelas.
Sempre saia de casa com sua maquiagem e sapatos grandes, mas nunca esboçava um sorriso sequer. Trabalhava num supermercado pela manhã, como gerente. Desde que entrou trouxe antipatia por sua excentricidade e laconismo, mas seu metodismo lhe fazia eficiente e por isso não foi despedido nos dezesseis anos que estava por lá.
Crianças pediam balões, puxavam seu macacão, o máximo que esse palhaço fazia era falar com os responsáveis para controlá-las. Não que desgoste das crianças, entretanto pouco atura* o brilho excessivo em seus olhos. Algo que remetia-lhe ao passado e o lembrava de sua infância atípica. Nunca viveu qualquer coisa excepcional, talvez por isso tenha virado um palhaço.
Certo dia chegaram pessoas de uma cidade longínqua àquela. Era uma família de duas pessoas e um urso. O pai parecia se divertir com tudo, seus olhos reluziam como os de um garotinho, nosso palhaço não gostou dele. A menina de cabelos cacheados e vestido rosa, levava apertado em seus braços o urso. Um urso cego. Ela não era como as crianças que esse palhaço já havia visto.
Curioso, tentou iniciar uma conversa, porém como um adulto ela não levava a sério alguém vestido de palhaço. Por ela fez coisas que jamais tinha feito a outras crianças: bichinhos de balão, moedas tiradas da orelha, malabarismos. Inclusive deixou de se apresentar em sua sala espelhada; já negou uma promoção achando que atrapalharia o costumeiro espetáculo. Seu maior prazer eram as horas passadas em compania aos seus reflexos, mas nos últimos dias mal lembrava-se da saleta onde realmente conseguia ser quem era. Conquistá-la pouco tinha de uma tarefa fácil e já estava perto de desistir. Não era acostumado a desejar coisas, nem a lutar por elas. Essa era a primeira vez, a última provavelmente.
Numa tarde, igual às outras que haviam sucedido a chegada da garota, ele aproximou-se. Assim como antes, ela não teve nenhuma reação, porém ao invés de tentar agradá-la parou em sua frente e encarou-a. Olharam-se por muito tempo, ou o que pensaram ser muito tempo. Nenhum ruído atravessava a barreira que criaram em seu redor. O pai chegou, viu a cena e sorriu, aproximou-se pondo as mãos nos ombros dela e alternou o olhar entre o palhaço e o rosto levantado de sua filha.
Não derrotado, mas tendo responsabilidades, o palhaço despede-se do homem de olhos brilhantes, mais por educação do que por qualquer outra coisa. Vira-se e sai. É surpreendido por uma pequena mão que agarra a sua; a menina de olhos opacos tem um brilho no olhar. Não O brilho que ele tanto detesta, mas algo que chamou sua atenção, aguçando sua curiosidade e fazendo com que ficasse parado olhando-a juntar-se ao pai e seguirem para onde ele não sabia, entretanto suspeitava ser o local no qual estavam hospedados.
No dia seguinte ela o acompanhou aonde quer que fosse, sempre em silêncio e atenta a seus passos. Ninguém notou; não o notavam, por conseqüência não a notaram. Mesmo indo para casa foi seguido. Entrando, direcionou-se à SUA sala especial que nunca havia mostrado para alguém. Olhou ao redor, a menina não estava perto, voltou e a encontrou parada ainda na entrada. Sem nada dizer abriu o caminho para ela, que dessa vez passou na frente, e como se soubesse para onde ir andou até a porta colorida, que guardava os segredos do palhaço.
Acomodou-a na única cadeira da sala, e começou seu espetáculo. A garota ria, ele gostava da risada então a fazia rir mais e mais. Eles não cansaram, mas a escuridão tomou conta do cômodo, iluminado pela luz que atravessava o vidro no lugar do teto. Resolveu levá-la de volta.
Passaram alguns dias assim. Até que ela falou pela primeira vez desde que a conhecera e a partir desse momento as brincadeiras e palhaçadas perderam lugar para o diálogo e o silêncio, que fazia os pensamentos trabalharem melhor para uma próxima conversa. O palhaço passara a sorrir longe dos espelhos. A menina levava consigo olhos atipicamente iluminados. O pai de longe tudo acompanhava e seguia do modo que viera, talvez ainda mais feliz, não se pode dizer bem o motivo. O urso, sempre arrastado de um lado para o outro, ia com sua dona-mãe para onde o palhaço fosse, escutando os diálogos e guardando segredo. Não gostou quando sua mãe-amiga contou o motivo de ter-lhe tirado os olhos para o palhaço, esse era um segredo deles, contudo entendeu mais tarde que assim como ele o palhaço era parte da dona-irmã e sendo um segredo também dela nada de mal havia em compartilhar com aquele que indiretamente era parte dele.
Foi um dia como tantos que vinham, estavam sentados na grama de um dos morros que cercavam a cidade, o silêncio quebrado por uma pergunta um tanto indiscreta, mas necessária tendo em vista que era um dos motivos para a aproximação deles. Ela respondeu após um longo período, apertando um pouco mais o seu amigo-irmão, que não gostava do fato dele compartilhar algo que ela nunca pudera com o pai, o brilho no olhar, e pondo fim nessa característica em comum pôde fazer dele ainda mais seu.
Outra pergunta dançava sobre os lábios do palhaço, porém ele não a faria, e ela não responderia se ele o fizesse. Ficaram calados por mais algum tempo. Até ele espirrar e ela desejar-lhe saúde.
Sem más intenções o homem de olhos brilhantes comunicou à família o regresso próximo. A menina pouco poderia fazer, e mesmo se pudesse ficar iria com seu pai. Nesse dia não foi de encontro ao palhaço, nem no seguinte, no terceiro dia o urso convenceu-lhe a procurá-lo.
Ele não estava trabalhando, embora fosse manhã. Foi até a casa, nada. Seguiu para o último local de seus encontros, achou-o deitado olhando as nuvens incomuns daquela cidade. Ficou em silêncio, sentiu que devia explicações, não as deu. Foi rápida e direta: iria embora, não sabia quando; somente iria. O palhaço a olhou, pela primeira vez seus olhos brilhavam, eram cacos de espelhos. Ele disse após ter estudado detalhadamente seis nuvens, num tom baixo e delicado, que no fim o mais importante não eram as pessoas que haviam amado você, mas as que você havia amado. A menina não concorda e fala que ao final tudo é importante e sendo importante não há mais ou menos, importante e só. Ele retruca, como quem não quer dizer muita coisa, que ela é importante, bem mais que o normal. Ainda cética, questiona o que seria o normal de importante. O palhaço não replica, assumiu não saber, mas insiste que ela É mais importante que qualquer outra coisa que já tenha passado por sua vida.
Silenciaram, suas mentes trabalhavam fervorosamente, nada escutavam ao seu redor. Tal como o verdadeiro início de tudo. Coisas confusas que faziam sentido. Memórias. Ligações.
Diz séria e levantando-se que ele é importante para ela também. Volta e encontra seu pai.
No mesmo dia a família de duas pessoas e um urso, cego por sua dona, voltou para a cidade que é perto da sua e nenhuma outra história foi contada sobre o palhaço de uma cidade onde as nuvens eram azuis e o céu cor-de-rosa.